Jornalismo, ciência e pandemia - Pequenas reflexões


    Premissas, explicações, dados e pesquisas articuladas de forma confiante estão presentes em entrevistas de cientistas para a mídia, durante a pandemia de Covid-19. Suas vozes ajudam a explicar o alcance do vírus, a função da vacina, os novos termos como isolamento social, lockdown, imunidade, cepas e medidas preventivas. Um jornalismo mais afeito a temas científicos certamente será ainda mais requisitado a partir de agora. 

 

    No momento em que fake news e robôs de redes sociais são um motor da política, muitas vezes sendo objeto de investigação da imprensa, o trabalho do jornalista científico teve sua evidência e necessidade aumentadas, pois a informação checada e profissional compete com um mar de informações falseadas, publicadas em posts e compartilhadas pelo Whatsapp. Por ser tão desafiador em tempos de pandemia e rede social, é óbvio que o jornalismo científico precisa de profissionais bem informados, comprometidos e com treinamento adequado para  questionar e interagir com cientistas, divulgadores. Saber lidar com resultados, pesquisas, processos longos e narrá-los de forma a ganhar um público cada vez maior é horizonte de quem atua na área.

 

    A ascensão das redes sociais somou mais um trabalho ao dia a dia das redações: o de desmentir inverdades espalhadas nas plataformas. Note-se os diversificados sites de fact-checking, engajados na luta diária contra a desinformação. A consulta a fontes científicas ajuda o jornalista a levar à população a informação real e relevante. Deve-se considerar também o esforço de cientistas nas redes sociais, abrindo caminho para a razão em meio ao palavrório que tantas vezes quer apenas defender ideologias. A ciência virou vítima de extremistas que a atacam para defender partidos, candidatos e autoridades no Brasil e no mundo. Se o objetivo de desinformar virou rotina administrativa em alguns governos, mostrar a ciência sendo feita no país deve ser a rotina levada a todo tipo de público, por meio de contas nas redes sociais, revistas. Programas televisivos jornalísticos devem ser pensados e articulados com esse propósito.

 

    O jornalismo científico é ferramenta afirmativa e esclarecedora diante do negacionismo da pandemia e da criação de versões para minimizar a gravidade da doença, confundindo a população, relativizando fatos, como fizeram, dentre outros, os presidentes do Brasil e dos Estados Unidos. Em seu livro “A morte da verdade”, a jornalista norte-americana Michiko Kakutani expõe tentativas de enterrarem a verdade e de confundirem a comunicação correta no meio científico. “Desde então, o discurso relativista tem sido usurpado pela direita populista, incluindo os criacionistas e os negacionistas climáticos, que insistem que suas teorias sejam ensinadas junto com as teorias baseadas na ciência”, escreve Kakutani ao comentar o início das guerras culturais, nos anos 1960.

 

    Quanto mais investimento em ciência e quanto maior o número de estudiosos com preparo para falar sobre seus enunciados, profissionais do jornalismo científico, por exemplo, melhor será a comunicação e mais eficiente a entrega da informação correta ao público. Em 2020 e 2021, tantas vezes foram necessários os desmentidos de notícias falsas e manipulações de estudos sobre eficácia de cloroquina, por exemplo, tendo os divulgadores da ciência participado e contribuído para o desempate vital entre o que é real e o negacionismo, comportamento que custa mais vidas e causa mais sequelas aos atingidos pela Covid-19.       

    

    Um jornalismo científico alerta e consciente das transformações do mundo digital e suas consequências para o debate público com a ciência cada vez mais presente é um diferencial dentro da redação de qualquer veículo. Ele facilita a aproximação da ciência com a sociedade em tempo de pandemia que se prolonga em nosso país e não sai do destaque de nenhum meio de comunicação.

 

    A origem do Sars-Cov-2 (hospedeiro intermediário) ainda é motivo de controvérsias, o que torna seu estudo e a divulgação correta do que se virá a conhecer sobre o vírus urgentes para afastar preconceitos e estigmatização de uma região e de um povo. É quase um antídoto ao discurso populista de políticos que preferem narrativas polemizadas para se aproveitar do conhecimento deficitário de seus governados. Ainda que muitos escolham conscientemente negar fatos, evidências, comprovações, a ciência e seus postulados devem continuar acessíveis a todos; sua comunicação permanente é indispensável para que a sociedade possa cobrar do país o planejamento e capacidade de realizar uma campanha de vacinação, no exemplo mais urgente da atualidade. Índia, Turquia e Brasil sofreram danos muito maiores pela pandemia em razão dos discursos anticientíficos de seus governantes. 

 

    Sabe-se que transformar a ciência em alvo de interesse do público e chamar atenção para sua importância também deve ser uma meta do jornalismo científico, para além da pandemia que vivemos. Em 2021, tempo das inseparáveis telas móveis, testemunhamos tentativa por parte do governo Bolsonaro de mudar a bula de um remédio, a cloroquina. Mais um sinal de que a gravidade da negação da ciência e sua exploração não tem limites, sendo o jornalismo científico uma das ferramentas da democracia para esclarecer e rebater informações que nascem com tais atitudes, como a gravidade dessa tentativa de alterar uma bula farmacológica e dar a um remédio função que ele não tem. 

 

    A pluralidade de fontes usadas pelo jornalismo que cobre a ciência também é uma questão que chama atenção ao pensar sobre o tema. Escolher múltiplas vozes e ângulos para reportar sobre pandemia, vacina, investimentos, políticas públicas, assim como os interesses de empresas privadas e suas relações com governos e empresas públicas é parte do desafio do jornalismo responsável pela cobertura científica. Multiplicidade de fontes para tratar de um assunto que está na mídia diariamente, em seu segundo ano de cobertura constante, é um requisito fundamental a toda prática jornalística que preza a busca da imparcialidade. O que torna o trabalho mais sofisticado e meticuloso.

 

    As transformações do mundo e da vida social com a chegada e consequências da pandemia devem permanecer e continuar sendo pauta no jornalismo, assim como a preocupante possibilidade de surgimento de outras pandemias. É fato que não apenas o jornalista especializado nessa área precisa estar informado sobre o funcionamento da engrenagem científica no país onde atua, mas todo jornalista que integra um veículo de comunicação também deve estar consciente da importância de conhecer a maneira de investigar, decodificar e interpretar o que será notícia no universo científico. 

 

    A pandemia evidenciou a relação da ciência com todos os níveis da vida em sociedade, que também passa pelo combate e prevenção à desinformação como requisitos de um ambiente social livre, sendo um direito de todos o acesso a informação segura, apurada por profissionais responsáveis. O jornalismo científico exerce um papel fundamental na manutenção da democracia em tempos de pandemia, momento em que deve-se afirmar e repetir o quanto é vital a proteção da verdade e da ciência.

Comentários