Antes, depois, nunca, agora, sempre

       Eu estava quieto depois de responder a um email. Eu estava quieto e mergulhado no meu microscópico mundo, como se eu tivesse vivido ali por todo o tempo. E todo o sempre o sempre tivesse sido como o minúsculo mundo. Minhas preocupações tolas e repetitivas, minhas tentativas fortuitas e inúteis de mudar muitas coisas, minhas tentativas impotentes e inúteis de manter muita coisa do mesmo jeito. Antes, depois, nunca, agora, sempre. Cinco selos temporais abalados, tão usados para tentar dar conta do que não se pode explicar direito, não sem deixar dúvidas. 

 

    Como era o mundo antes? Como ele é agora? Como será depois? Ele nunca mais será como sempre foi. Nunca mais será como antes, depois dela. Que frase mal feita, por mim e pela situação.

 

    Eu fui ao mercado, eu liguei para meu pai, eu comi algo da minha preferência, eu pensei pela milionésima vez em como o mundo, o microscópico e o maior, poderiam ser lugares mais silenciosos. Eu vi uma série, eu falei com amigos, eu recebi memes, eu escrevi, eu olhei o celular um quintilhão de vezes. Eu fiz tudo igual sem aprender que o mundo estava se transformando. Eu comi pizza pela milionésima vez, eu pensei em comer e em evitar comer chocolate mais vezes do que alguém consegue contar. Em continuar o mesmo e em mudar. Em mudar tudo em mim, em modificar tudo o que eu vejo a partir de meu minúsculo universo. Minúsculo, mas universo.  

 

    Enquanto eu pensava em coisas que não consigo listar e outras que estão listadas em blocos de notas nas nuvens, no celular, no computador, em bloquinhos de papel coloridos, em várias contas online perdidas e modificadas. Enquanto eu pensava, trabalhava, estudava, me concentrava e me distraía. Enquanto eu achava que estava indo a algum lugar (para depois voltar), o mundo era desconstruído de forma perversa. 



   
Leio essa semana as palavras de um infectologista, mais uma vez, sobre ser mentira que o início da pandemia foi num mercado molhado de Wuhan. Eu leio no mesmo site de notícias, um dos mais respeitados do mundo, que cientistas estão cada vez mais confiantes de que precisamos de mais informações sobre o início dela, sobre o vazamento no laboratório. Lab-leak, quem sabe em outra língua é mais fácil entender. Mas não é. Cientistas norte-americanos parecem se aproximar do consenso de que o erro maior foi a China ter encoberto um acidente com o vírus e a hospitalização de funcionários do laboratório, quando deveria ter alertado o mundo sobre o risco da pandemia e não alertou.

 

    Enquanto eu me obrigava a me concentrar e, em seguida, a me distrair, como se a vida fosse um joguinho de concentração (focar) e descontração (desfocar), o visor do microscópio era invadido por algo gigantesco, confuso, inacreditável. Algo mortal, impetuoso, mortal. Algo invisível, assustador, que mandou um cala boca temporário na gritaria do mundo. Mortal. Mortal na Europa, na Ásia, na África, no Sul e no Norte. Mortal que mata em silêncio e deixa o choro e o grito dos que ficaram a interromper o mesmo silêncio temporário.  Antes, depois, nunca, agora, sempre.

 

    Antes era assim. Antes dela eu iria, eu faria. Agora vamos fazer de outro modo. Agora com ela, é assim que faço, assim que fazemos. Depois que ela acabar, faremos. Nunca pensei que fosse ser assim. Ainda é cedo para saber o tamanho de tudo.

 

    Observo e sou testemunha de rostos encobertos, obrigados a viver como se o mundo estivesse como estava antes. Aceleram suas motos, levam coisas do mundo de fora, da rua, das lojas, para dentro das casas. Nos ônibus, nas filas, nas ruas. É a pandemia que nos faz ver pela TV milhares de rostos que não seriam vistos. Continuações e interrupções. Alguns isolados (quase ilusão), mas testemunhando uma multidão atingida, exausta, alcançada de alguma forma por ela.

 

    Os microcosmos se encontram, se olham, se vacinam, não se vacinam. Sobrevivem, não sobrevivem. Aleatórios ou direcionados, todos seguem o mesmo ritmo de segurar e soltar a respiração, de descontrair e saber que tudo vai mudar novamente, o mundo vai retornar, nossos micro universos, e de novo contrair e ouvir que vai demorar mais um pouco, mais um mês, mais um ano, uma variante, uma vida. 


 

 

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