Cuspida e escarrada


– Eu costumava ser um regime político, agora sou uma senhora aposentada num ensolarado país da América do Sul.

 

– O que seria isso?

 

– Ensolarado? Pergunta a senhora, surpresa, como se alguém pudesse desconhecer a democracia.

 

– Democracia, diz a jovem de 17 anos. Eu ouço tanto falar mas não sei o que é exatamente.

 

– É porque aqui onde você vive a democracia funciona bem, por isso você nem a percebe. Democracia é um regime político onde todos tem o poder de eleger seu governo, é um modo de organização da vida em sociedade, dos poderes, dos direitos e deveres.

 

– E a senhora gostava do papel que desempenhava, vejo que senhora possui ainda a coluna ereta e o olhar firme das pessoas disciplinadas e decididas.

 

– Era muito difícil.

 

– Por quê?

 

– Porque me provocavam e assaltavam o tempo todo, cometiam crimes, pecados e obscenidades em meu nome. Me destruíram, mas fingindo me defender.

 

 – Que horror! E por quanto tempo a senhora suportou?

 

– Por muito tempo. Até virarem e revirarem a história, o ordenamento jurídico, tentarem transformar os porões em varandas, como se a rua fosse deles, a casa deles.

 

 – Como se a rua fosse a casa deles. Parecia difícil mesmo.

 

 – E agora como funciona o seu país? Como eles se organizam sem a senhora?

 

– Ninguém sabe direito porque não podem falar, nem comentar ou explicar. Na verdade, sabem e sentem precisamente, mas evitam comentar. É a estratégia de causar medo de tudo.

 

– Que estranho preferirem o medo à liberdade.

 

– Estranho e perigoso. Mas foram se acostumando lentamente. A cada semana um ataque, um desrespeito novo. Na outra uma afronta maior, ameaças de fechar isso ou aquilo. Dali a um mês uma recusa em obedecer leis, sempre nomeando amigos para a corte, para altos cargos.

 

– Deve ser triste.

 

– Mas pelo menos continuo viva. Tenho saúde. E escapei da Covid-19.

 

– E a senhora pensa em voltar pra lá?

 

– Jamais, não vale a pena.

 

– Sério?

 

– Sério. Eles diziam me respeitar, precisar de mim, mas cuspiam na minha cara ao mesmo tempo que fingiam me idolatrar. 

 

– E há quem diga que a democracia é mãe da liberdade. E se cospem na mãe, é porque não tem limites mesmo. Mas que tipo de pessoa cospe na mãe? Que tipo de pessoa cria alguém que cospe na própria mãe?

 

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